domingo, 14 de julho de 2013

As fontes do poder social e o contexto brasileiro

Paulo Eduardo Malerba

Ao ver milhões de pessoas nas ruas do Brasil reivindicando sobre diversos assuntos, apontando caminhos e questionando o sistema político e de poder, uma questão veio à tona: um dos temas centrais do estudo da teoria política é o poder, as formas como é exercido e quando ele é considerado legítimo e quais as fontes do poder em nossa sociedade.
 Mas, afinal, o que é poder?
De maneira sintética, é a capacidade de um sujeito (A) produzir alguma ação ou resultado ao determinar a conduta de outro sujeito (B). Este outro pode ou não perceber que está sob a influência do poder; em alguns casos o sujeito A pode não ter agido conscientemente, com base em seu poder, para alcançar determinados fins, embora o mais aceito seja que o exercício do poder ocorre com consciência e intenção. O exercício do poder pode acontecer de diversas formas, tanto legítimas quanto ilegítimas.
O sociólogo alemão Max Weber trouxe importantes contribuições sobre o tema ao definir as formas legítimas puras de exercício do poder, diferenciando o poder da autoridade. A legitimidade – e, portanto, a autoridade – decorre da aceitação do subordinado quanto à obediência frente ao poder. Isto significa que o uso do poder é autorizado e estabilizado mediante sua admissão de acordo com certas regras sociais. Segundo Weber, esta autoridade pode ser a) da tradicional, herdada dos hábitos, do costume; b) carismática, obtida por certo simbolismo ou heroísmo de quem detém o poder; c) racional-legal, baseada em leis, no direito, na justiça, em um conjunto de normas aceito pela sociedade, pela comunidade. Portanto, o poder é usado a partir de um consenso socialmente assentado entre aquele que tem o poder e aquele que é subordinado ao poder.
O emprego da violência ou da força física para efetivar o poder não é aceitável, exceto no caso do Estado. Na sociedade moderna, ainda segundo o autor, apenas o Estado possui o monopólio da violência, do uso da força, da coerção para colocar seu poder em prática. Em tese, o Estado deve ter o poder estabilizado e, portanto, governar e colocar seus objetivos em prática sem o uso da violência, a partir de uma série de valores e procedimentos socialmente aceitos. O uso da força serviria apenas para manutenção da ordem e estaria direcionada àqueles que buscam desestabilizar a autoridade, contrariando o consenso social sobre a legitimidade do poder. Já o autoritarismo excederia este limite da autoridade. Nesta situação, as ações e o exercício do poder estariam em desacordo com a aceitação de obediência dos subordinados (ou de sua maioria), sendo baseado no uso de fato – ou em potencial – da força.
O poder social não é dado naturalmente, mas construído nas relações humanas. Este tema é amplamente estudado sob diversas perspectivas e não há consenso sobre as fontes de poder em uma sociedade. Para o filósofo francês Michel Foucault, por exemplo, o poder é distribuído na sociedade. Todas as relações humanas são também, basicamente, relações de poder; entre pai e filho; padre e fiel; chefe e empregado; etc. O poder é um aspecto constante na sociedade que se externa através da disciplina, da vigilância e da punição, aspectos que servem para moldar o indivíduo à organização social.
Seguindo a análise, onde está concentrado o poder em nossa sociedade, poder este capaz de produzir controle, reprodução da ordem ou até mesmo o deslocamento da sociedade em determinado sentido? Seria apenas este poder disseminado socialmente, como descrito por Foucault, ou há indivíduos e instituições que possuem maior capacidade de exercê-lo com legitimidade ou ilegitimidade? Em um modelo republicano e democrático como o brasileiro, o uso do poder é regrado por leis, construídas com base em um sistema de representação democrática e em constante vigilância por diversos atores sociais, não apenas, mas prioritariamente, estatais, divididos em três poderes, de acordo com o esquema teórico de Montesquieu, que se controlam mutuamente.
Qual ou quais são as fontes do poder social?

                  Uma rápida resposta seria aquela que está em nossa constituição e  remete à Rousseau, segundo a qual o poder emana do povo. Em última instância é uma observação adequada: todo poder é do povo e em seu nome deve ser exercido, o povo tem a condição de mudar o jogo. No entanto, essa assertiva nos leva a outras questões. A primeira delas seria quem é o povo? Uma pergunta similar levanta-se quando alguém fala sobre “os interesses da sociedade civil” diante do Estado e da atual política . Mas qual sociedade estamos falando? A sociedade civil não é uma entidade homogênea, pelo contrário, ela é perpassada por contradições e oposições de interesses. Seria a sociedade civil formada por todas as pessoas e instituições que não são parte do Estado? Deste modo, Fiesp, diretórios estudantis, sindicatos de trabalhadores, aposentados, acadêmicos, Silvio Santos, ruralistas, Central Única das Favelas, comerciários, entre tantos outros, formariam a sociedade civil? Sim, mas nem de longe possuem os mesmos interesses e pensam da mesma forma, tampouco se relacionam com a política e com o Estado da mesma maneira. Alguns destes agentes se beneficiam da atual ordem política, econômica e social e ajudam na manutenção e fortalecimento deste status, enquanto outros o questionam frontalmente. Em termos marxistas a luta de classes acontece na sociedade civil e o Estado é um aparelho para reproduzir e assegurar a dominação de classes na sociedade. Isso se reflete em sua estrutura de poder. A dimensão das contradições de classes é fundamental de se considerar, embora não seja única ela é central, inclusive porque as ruas trazem mensagens totalmente diferentes – amparadas em arcabouços ideológicos e sociais distintos –, que não são capazes de serem canalizadas para o Estado concomitantemente, por exemplo, de um lado a tarifa zero, do outro a redução de impostos, ou mesmo os que flertam com regimes autoritários e a eliminação dos direitos políticos. As demandas das ruas, tal qual a sociedade, não são homogêneas, nem em sua composição social nem em sua pauta. Há oposição de interesses e visões.
                  Alguns elementos interessantes das fontes do poder podem ser encontrados na obra de Michael Mann, um sociólogo britânico, homônimo do diretor de cinema estadunidense. Em seu trabalho “As fontes do poder social” há um interessante debate que ajuda a compreender a lógica do poder social nas sociedades contemporâneas. Para o autor, as sociedades não possuem apenas uma fonte de poder social com legitimidade, no caso o Estado, mas são formadas por quatro fontes de poder socialmente dominantes: a ideologia, a economia, a militar e a política. Estas fontes sociais de poder se estruturam como redes que se interceptam ou mesmo se sobrepõem no tempo e no espaço, criando arranjos sociais.
Para Mann as quatro fontes não são necessariamente uma única sociedade. Elas podem estar presentes em várias sociedades, pois não são limitadas pelas fronteiras do Estado-nação, podendo extrapolá-lo. Somente estabelecendo a sociedade como redes de poder consegue-se entender o que pode ser primordial ou determinante em sua constituição. Não existe uma fonte social de poder que “naturalmente” domine as demais, isto é, que seja mais poderosa a priori. São os processos sociais e históricos em andamento que configuram e reconfiguram as relações entre as fontes de poder social, existindo sempre a predominância de uma delas em diferentes circunstâncias históricas.
Outro aspecto importante que o autor aborda é que a sociedade cristaliza as fontes de poder. Identificamos tais fontes na medida em que elas se cristalizam em Instituições, comportamentos, ações. Isto seria uma “tomada de forma” das fontes de poder gerando hierarquização entre elas e conflitos em suas sobreposições. A título de exemplo, o Estado cristaliza a fonte do poder político; as unidades econômicas, empresas, corporações cristalizam o poder econômico; as universidades, os think tanks, a mídia, a publicidade, cristalizam o poder da ideologia e, por fim, as forças armadas dão forma ao poder militar.
Os projetos dominantes na sociedade precisam se vincular, relacionar e articular as fontes (ideologia, economia, política e força militar) para efetivar sua dominação. O capitalismo é o modo de produção dominante e que determina o comportamento. Ele articula as diferentes fontes, com predominância da economia, mas onde o poder político e ideológico são entramados de forma a garantir o fortalecimento deste modelo de organização da produção e social. O Estado se estabelece com base e dependência da fonte econômica, a qual também precisa deste mesmo Estado para sua manutenção e desenvolvimento. A economia como forma organizacional no capitalismo configura uma rede onde a posse dos meios de produção e valorização do capital torna-se uma fonte de poder capaz de induzir comportamentos, organizar e controlar a sociedade. O militarismo está articulado nesta lógica através do Estado, garantindo os meios de sua reprodução.
Embora as fontes de poder possuam uma certa autonomia, a política, a economia, a ideologia e o poder militar não são facilmente separados, pois suas relações são profundas e acontecem de diversas maneiras, criando inúmeros arranjos. Deste modo, torna-se importante entender de que maneira estas redes se relacionam, se estabelecem e se modificam. Portanto, as relações entre as fontes não estão dadas, elas precisam ser construídas, bem como a manutenção de um projeto dominante, como no caso do capitalismo, precisa articular todas as formas de poder, mesmo que sua fonte primária seja econômica. Isto não implica em dizer que a dominação é perfeita quando se consegue determinado arranjo das fontes de poder, pois a sobreposição das redes possui brechas, isto é, elas não coincidem inteiramente. Embora a rede econômica seja preponderante, a ideologia, que surge de diferentes dinâmicas, relacionando-se de forma distinta, mais ou menos integrada ao poder econômico, assim como a política, podem colocar limitações à economia em dadas situações. Quanto mais alinhadas estão as redes ideológicas, políticas, econômicas e militares, mais completa é a dominação e quanto menos coincidentes forem, provocam mais conflitos sociais.
Cremos que esta perspectiva de Michael Mann contribui para mostrar as diferentes formas do poder social se expressar em nossa sociedade, algo que contribui para tornar as discussões mais complexas. A visão que, particularmente, concordamos e compartilhamos ampara-se na teoria de Marx e mostra que estas fontes de poder estariam articuladas dentro do contexto da luta de classes; o controle dos meios de produção, o Estado e a ideologia dominantes são aquelas da classe dominante e usadas para reproduzir a dominação de classe. Portanto, as fontes de poder social se articulam na disputa que é dada, não apenas nesta dimensão, mas fundamentalmente na luta de classes.
       O exposto acima indica que as estruturas sociais são mais profundas e complexas que o aparente domínio do poder pelas forças políticas, constantemente questionadas (com razão), na medida em que elas são moldadas e fortalecidas por outras fontes de poder, legitimadas em nossa ordem social. Ao aprofundar este pensamento, a fonte do poder político é a única que, de certa forma, a população em geral tem algum controle. Torna-se preocupante que a política não seja a maior fatia do poder social e que as representações nos parlamentos e governos, sempre com a possibilidade democrática de substituição, não representem os anseios populares ou caminhem no sentido de não fortalecer esta própria fonte de poder. Que este modelo de democracia esteja mais vinculado a reproduzir determinados padrões de relações sociais, mediados pelo capitalismo, do que dar autonomia.
   O poder econômico dominante, sob controle, em grande medida, de entes privados, não é permeável aos interesses populares e tem adquirido um domínio cada vez maior sobre a política no Brasil. Seus interesses são guiados pela lógica do capital, da valorização, do lucro. Não há mecanismos concretos para que a população interfira em seu funcionamento; e seu domínio na política, em última instância, busca neutralizar o controle popular da política – e, dessa forma, do próprio sistema social. O poder ideológico tem sido produzido, em sua dinâmica, sob essa mesma perspectiva, para atender a interesses econômicos, fortalecer e manter o modo de produção, não obstante todos que discutem a sociedade a partir de outro arco ideológico e buscam colocar diversos temas em disputa sob outra perspectiva.
Uma reforma política - que contemple financiamento público de campanhas; maior independência frente ao poder econômico; eleição por lista partidária, que obriga a construção de programas e propostas mais claras e fortalecimento das instituições partidárias em detrimento das forças fisiológicas; democratização interna dos partidos, entre outros -, pode ajudar no reequilíbrio de poder entre as fontes sociais de poder, pensadas na perspectiva de Michael Mann, embora não mude a ordem de sobreposição das redes e tampouco seja suficiente para resolver todas as questões apontadas pelas ruas – muitas das quais, destaca-se, já vinham sendo mostradas por diversos ativistas ao longo de décadas –, pois a alteração da articulação destas redes de poder demanda mudanças mais profundas. Uma reforma ampla e democrática pode abrir caminho para que se prossiga questionando e buscando mudar aspectos que também são determinantes na organização social e na forma como os problemas se estruturam e são colocados para maior parte da população brasileira.

Paulo Malerba é cientista social, mestre e doutorando em Ciência Política; vereador do PT em Jundiaí/SP. 


Nenhum comentário: