Paulo Eduardo Malerba
Ao ver milhões de pessoas nas ruas do Brasil reivindicando sobre
diversos assuntos, apontando caminhos e questionando o sistema político e de
poder, uma questão veio à tona: um dos temas centrais do estudo da
teoria política é o poder, as formas como é exercido e quando ele é considerado legítimo e quais as fontes do poder em nossa
sociedade.
Mas, afinal, o que é poder?
De
maneira sintética, é a capacidade de um sujeito (A) produzir alguma ação ou
resultado ao determinar a conduta de outro sujeito (B). Este outro pode ou não
perceber que está sob a influência do poder; em alguns casos o sujeito A pode
não ter agido conscientemente, com base em seu poder, para alcançar
determinados fins, embora o mais aceito seja que o exercício do poder ocorre
com consciência e intenção. O exercício do poder pode acontecer de diversas
formas, tanto legítimas quanto ilegítimas.
O sociólogo
alemão Max Weber trouxe importantes contribuições sobre o tema ao definir as
formas legítimas puras de exercício do poder, diferenciando o poder da
autoridade. A legitimidade – e, portanto, a autoridade – decorre da aceitação
do subordinado quanto à obediência frente ao poder. Isto significa que o uso do
poder é autorizado e estabilizado mediante sua admissão de acordo com certas
regras sociais. Segundo Weber, esta autoridade pode ser a) da tradicional,
herdada dos hábitos, do costume; b) carismática, obtida por certo simbolismo ou
heroísmo de quem detém o poder; c) racional-legal, baseada em leis, no direito,
na justiça, em um conjunto de normas aceito pela sociedade, pela comunidade. Portanto,
o poder é usado a partir de um consenso socialmente assentado entre aquele que
tem o poder e aquele que é subordinado ao poder.
O emprego
da violência ou da força física para efetivar o poder não é aceitável, exceto
no caso do Estado. Na sociedade moderna, ainda segundo o autor, apenas o Estado
possui o monopólio da violência, do uso da força, da coerção para colocar seu
poder em prática. Em tese, o Estado deve ter o poder estabilizado e, portanto,
governar e colocar seus objetivos em prática sem o uso da violência, a partir
de uma série de valores e procedimentos socialmente aceitos. O uso da força
serviria apenas para manutenção da ordem e estaria direcionada àqueles que
buscam desestabilizar a autoridade, contrariando o consenso social sobre a
legitimidade do poder. Já o autoritarismo excederia este limite da autoridade.
Nesta situação, as ações e o exercício do poder estariam em desacordo com a
aceitação de obediência dos subordinados (ou de sua maioria), sendo baseado no
uso de fato – ou em potencial – da força.
O poder
social não é dado naturalmente, mas construído nas relações humanas. Este tema
é amplamente estudado sob diversas perspectivas e não há consenso sobre as
fontes de poder em uma sociedade. Para o filósofo francês Michel Foucault, por
exemplo, o poder é distribuído na sociedade. Todas as relações humanas são
também, basicamente, relações de poder; entre pai e filho; padre e fiel; chefe
e empregado; etc. O poder é um aspecto constante na sociedade que se externa
através da disciplina, da vigilância e da punição, aspectos que servem para
moldar o indivíduo à organização social.
Seguindo
a análise, onde está concentrado o poder em nossa sociedade, poder este capaz
de produzir controle, reprodução da ordem ou até mesmo o deslocamento da
sociedade em determinado sentido? Seria apenas este poder disseminado
socialmente, como descrito por Foucault, ou há indivíduos e instituições que
possuem maior capacidade de exercê-lo com legitimidade ou ilegitimidade? Em um
modelo republicano e democrático como o brasileiro, o uso do poder é regrado
por leis, construídas com base em um sistema de representação democrática e em
constante vigilância por diversos atores sociais, não apenas, mas
prioritariamente, estatais, divididos em três poderes, de acordo com o esquema
teórico de Montesquieu, que se controlam mutuamente.
Qual ou
quais são as fontes do poder social?
Uma rápida resposta seria aquela que está em nossa constituição e remete à Rousseau, segundo a qual o poder emana do povo. Em última instância é uma observação adequada: todo poder é do povo e em seu nome deve ser exercido, o povo tem a condição de mudar o jogo. No entanto, essa assertiva nos leva a outras questões. A primeira delas seria quem é o povo? Uma pergunta similar levanta-se quando alguém fala sobre “os interesses da sociedade civil” diante do Estado e da atual política . Mas qual sociedade estamos falando? A sociedade civil não é uma entidade homogênea, pelo contrário, ela é perpassada por contradições e oposições de interesses. Seria a sociedade civil formada por todas as pessoas e instituições que não são parte do Estado? Deste modo, Fiesp, diretórios estudantis, sindicatos de trabalhadores, aposentados, acadêmicos, Silvio Santos, ruralistas, Central Única das Favelas, comerciários, entre tantos outros, formariam a sociedade civil? Sim, mas nem de longe possuem os mesmos interesses e pensam da mesma forma, tampouco se relacionam com a política e com o Estado da mesma maneira. Alguns destes agentes se beneficiam da atual ordem política, econômica e social e ajudam na manutenção e fortalecimento deste status, enquanto outros o questionam frontalmente. Em termos marxistas a luta de classes acontece na sociedade civil e o Estado é um aparelho para reproduzir e assegurar a dominação de classes na sociedade. Isso se reflete em sua estrutura de poder. A dimensão das contradições de classes é fundamental de se considerar, embora não seja única ela é central, inclusive porque as ruas trazem mensagens totalmente diferentes – amparadas em arcabouços ideológicos e sociais distintos –, que não são capazes de serem canalizadas para o Estado concomitantemente, por exemplo, de um lado a tarifa zero, do outro a redução de impostos, ou mesmo os que flertam com regimes autoritários e a eliminação dos direitos políticos. As demandas das ruas, tal qual a sociedade, não são homogêneas, nem em sua composição social nem em sua pauta. Há oposição de interesses e visões.
Alguns elementos
interessantes das fontes do poder podem ser encontrados na obra de Michael
Mann, um sociólogo britânico, homônimo do diretor de cinema estadunidense. Em
seu trabalho “As fontes do poder social” há um interessante debate que ajuda a
compreender a lógica do poder social nas sociedades contemporâneas. Para o
autor, as sociedades não possuem apenas uma fonte de poder social com
legitimidade, no caso o Estado, mas são formadas por quatro fontes de poder
socialmente dominantes: a ideologia, a economia, a militar e a
política. Estas fontes sociais de poder se estruturam como redes que se
interceptam ou mesmo se sobrepõem no tempo e no espaço, criando arranjos
sociais.
Para Mann
as quatro fontes não são necessariamente uma única sociedade. Elas podem estar
presentes em várias sociedades, pois não são limitadas pelas fronteiras do
Estado-nação, podendo extrapolá-lo. Somente estabelecendo a sociedade como
redes de poder consegue-se entender o que pode ser primordial ou determinante
em sua constituição. Não existe uma fonte social de poder que “naturalmente”
domine as demais, isto é, que seja mais poderosa a priori. São os processos
sociais e históricos em andamento que configuram e reconfiguram as relações
entre as fontes de poder social, existindo sempre a predominância de uma delas
em diferentes circunstâncias históricas.
Outro
aspecto importante que o autor aborda é que a sociedade cristaliza as fontes de
poder. Identificamos tais fontes na medida em que elas se cristalizam em
Instituições, comportamentos, ações. Isto seria uma “tomada de forma” das
fontes de poder gerando hierarquização entre elas e conflitos em suas
sobreposições. A título de exemplo, o Estado cristaliza a fonte do poder
político; as unidades econômicas, empresas, corporações cristalizam o poder econômico;
as universidades, os think tanks, a mídia, a publicidade, cristalizam o poder
da ideologia e, por fim, as forças armadas dão forma ao poder militar.
Os
projetos dominantes na sociedade precisam se vincular, relacionar e articular
as fontes (ideologia, economia, política e força militar) para efetivar sua
dominação. O capitalismo é o modo
de produção dominante e que determina o comportamento. Ele articula as
diferentes fontes, com predominância da economia, mas onde o poder político e
ideológico são entramados de forma a garantir o fortalecimento deste modelo de
organização da produção e social. O Estado se estabelece com base e
dependência da fonte econômica, a qual também precisa deste mesmo Estado para
sua manutenção e desenvolvimento. A economia como forma organizacional no
capitalismo configura uma rede onde a posse dos meios de produção e valorização
do capital torna-se uma fonte de poder capaz de induzir comportamentos,
organizar e controlar a sociedade. O militarismo está articulado nesta lógica
através do Estado, garantindo os meios de sua reprodução.
Embora as
fontes de poder possuam uma certa autonomia, a política, a economia, a
ideologia e o poder militar não são facilmente separados, pois suas relações
são profundas e acontecem de diversas maneiras, criando inúmeros arranjos.
Deste modo, torna-se importante entender de que maneira estas redes se
relacionam, se estabelecem e se modificam. Portanto, as relações entre as
fontes não estão dadas, elas precisam ser construídas, bem como a manutenção de
um projeto dominante, como no caso do capitalismo, precisa articular todas as
formas de poder, mesmo que sua fonte primária seja econômica. Isto não implica
em dizer que a dominação é perfeita quando se consegue determinado arranjo das
fontes de poder, pois a sobreposição das redes possui brechas, isto é, elas não
coincidem inteiramente. Embora a rede econômica seja preponderante, a
ideologia, que surge de diferentes dinâmicas, relacionando-se de forma
distinta, mais ou menos integrada ao poder econômico, assim como a política,
podem colocar limitações à economia em dadas situações. Quanto mais alinhadas
estão as redes ideológicas, políticas, econômicas e militares, mais completa é
a dominação e quanto menos coincidentes forem, provocam mais conflitos sociais.
Cremos
que esta perspectiva de Michael Mann contribui para mostrar as diferentes
formas do poder social se expressar em nossa sociedade, algo que contribui para
tornar as discussões mais complexas. A visão que, particularmente, concordamos
e compartilhamos ampara-se na teoria de Marx e mostra que estas fontes de poder
estariam articuladas dentro do contexto da luta de classes; o controle dos
meios de produção, o Estado e a ideologia dominantes são aquelas da classe
dominante e usadas para reproduzir a dominação de classe. Portanto, as fontes
de poder social se articulam na disputa que é dada, não apenas nesta dimensão,
mas fundamentalmente na luta de classes.
O exposto acima indica que as estruturas
sociais são mais profundas e complexas que o aparente domínio do poder pelas
forças políticas, constantemente questionadas (com razão), na medida em que
elas são moldadas e fortalecidas por outras fontes de poder, legitimadas em
nossa ordem social. Ao aprofundar este pensamento, a fonte do poder político é
a única que, de certa forma, a população em geral tem algum controle. Torna-se
preocupante que a política não seja a maior fatia do poder social e que as
representações nos parlamentos e governos, sempre com a possibilidade
democrática de substituição, não representem os anseios populares ou caminhem
no sentido de não fortalecer esta própria fonte de poder. Que este modelo de
democracia esteja mais vinculado a reproduzir determinados padrões de relações
sociais, mediados pelo capitalismo, do que dar autonomia.
O poder
econômico dominante, sob controle, em grande medida, de entes privados, não é
permeável aos interesses populares e tem adquirido um domínio cada vez maior
sobre a política no Brasil. Seus interesses são guiados pela lógica do capital, da valorização, do
lucro. Não há mecanismos concretos para que a população interfira em seu
funcionamento; e seu domínio na política, em última instância, busca
neutralizar o controle popular da política – e, dessa forma, do próprio sistema
social. O poder ideológico tem sido produzido, em sua dinâmica, sob essa mesma
perspectiva, para atender a interesses econômicos, fortalecer e manter o modo
de produção, não obstante todos que discutem a sociedade a partir de outro arco
ideológico e buscam colocar diversos temas em disputa sob outra perspectiva.
Uma
reforma política - que contemple financiamento público de campanhas; maior
independência frente ao poder econômico; eleição por lista partidária, que
obriga a construção de programas e propostas mais claras e fortalecimento das
instituições partidárias em detrimento das forças fisiológicas; democratização
interna dos partidos, entre outros -, pode ajudar no reequilíbrio de poder
entre as fontes sociais de poder, pensadas na perspectiva de Michael Mann,
embora não mude a ordem de sobreposição das redes e tampouco seja suficiente
para resolver todas as questões apontadas pelas ruas – muitas das quais,
destaca-se, já vinham sendo mostradas por diversos ativistas ao longo de
décadas –, pois a alteração da articulação destas redes de poder demanda
mudanças mais profundas. Uma reforma ampla e democrática pode abrir caminho
para que se prossiga questionando e buscando mudar aspectos que também são determinantes
na organização social e na forma como os problemas se estruturam e são
colocados para maior parte da população brasileira.
Paulo Malerba é cientista social, mestre e doutorando em Ciência Política; vereador do PT em Jundiaí/SP.
Nenhum comentário:
Postar um comentário