domingo, 28 de julho de 2013

Violência no Brasil e suas causas: caminhos para o debate

Por Paulo Eduardo Malerba


Neste ano foi lançada mais uma edição da pesquisa “Mapa da Violência”, de autoria de Julio Jacobo Waiselfisz, que destaca as mortes causadas por arma de fogo no Brasil desde 1980 até 2010. Nela é possível comparar a evolução anual das mortes, divididas em categorias, o que nos ajuda a entender o aumento do número de mortes em termos absolutos e proporcionais no país, bem como alguns momentos de estabilidade. Outro aspecto importante é o modo pelo qual são apresentados os dados, cuja divisão por região e por Estado da federação nos mostra um quadro comparativo ao longo destes anos. Uma pesquisa que ajuda a pensar o Brasil em termos da violência, algo que tem pautado diversos debates políticos e tem sido presença constante na mídia nacional.

As mortes por arma de fogo (AF) no Brasil, que eram 7,3 por 100 mil habitantes em 1980, avançaram até 22,7 por 100 mil habitantes em 2003, tendo sido seu auge. Desde então se situa em patamar médio de 20,2 até 2010. Entre os jovens (15 a 29 anos), esse tipo de morte atingiu em 1980 a taxa de 12,8 e chegou a alcançar 46,5 em 2003, para depois situar-se em uma média de 43,05 mortes por 100 mil habitantes até 2010. Sob qualquer perspectiva é alarmante os dados da violência no Brasil neste período, que já se iniciaram em patamar elevado e avançaram durante longo período até índices que colocam o país entre os dez mais violentos do mundo.

Em termos de raça/cor nota-se que foram 10.428 brancos e 26.049 negros mortos por AF no ano de 2010. Segundo o autor da pesquisa: “Utilizando os dados do Censo de 2010, podemos verificar que as taxas resultantes foram 11,5 óbitos para cada 100 mil brancos e 26,8 óbitos para cada 100 mil negros. Dessa forma, a vitimização negra foi de 133%, isto é, morrem proporcionalmente vítimas de arma de fogo 133% mais negros que brancos”.

Levando-se em conta os dados apresentados nos dois parágrafos acima, podemos observar que as mortes são majoritariamente entre jovens e negros.

As mortes por arma de fogo são divididas em quatro tipos diferentes, aquelas decorrentes de homicídio, suicídio, acidentes e motivos indeterminados; onde o homicídio é aquele relacionado diretamente com a violência social. O maior aumento proporcional de homicídios por AF no Brasil aconteceu nas décadas de 1980, quando em seu início o índice era de 5,1 e terminou em 1990 com 11,5 mortes por 100 mil pessoas; em seguida, a década de 90 que terminou em 2000 com 18,2 mortes por 100 mil. Nos anos 2000, a partir de 2003 - quando teve o mencionado ápice com 20,4 homicídios por AF para 100 mil pessoas - existe certa estabilidade dos números, com modesto decréscimo no período, fechando 2010 com 19,3.

Isso não implica que foi um movimento homogêneo: em Alagoas, por exemplo, entre 2000 e 2010 houve elevação de 215% das mortes por arma de fogo; no Pará, o aumento foi de 307%; enquanto em São Paulo a redução foi de 67% e, no Rio de Janeiro, de 43%.

Ao observarmos os dados referentes a mortes por AF nas diferentes regiões do país considerando a primeira década do século XXI, nota-se que a maior elevação ocorreu no Norte, cuja taxa foi de 140%. Já o Sudeste apresentou uma diminuição de 45%. No Sul do país, enquanto o estado do Paraná teve uma ascensão de 94%, o Rio Grande do Sul apresentou uma redução de 0,3%. No Nordeste, à exceção de Pernambuco em que os casos recuaram 35%, houve ampliação significativa em vários outros Estados, representando uma elevação de 73% dos casos.

As mortes por AF no Brasil vitimaram 800 mil pessoas nestas três décadas, do total são 450 mil jovens, o que representa em torno de dois terços. Considerando o número de homicídio, 70% das ocorrências são causadas por armas de fogo. Na comparação internacional, sempre colocando sob dúvidas a qualidade dos dados oriundos de diversos países, o Brasil está em 9° lugar, atrás apenas de países latino-americanos e do Iraque. Entre os vinte primeiros há apenas um país desenvolvido, os Estados Unidos, em 16°, com 10,3 mortes para 100 mil, sendo que destas, 4,0 são homicídios e 6,0 são suicídios, além de 0,2 por acidente e 0,1 por razões indeterminadas. Depois dele, entre os desenvolvidos, aparece apenas em 37° a Finlândia, com 0,3 homicídios para cada 100 mil pessoas e 3,3 suicídios, totalizando 3,6. 

O autor aponta três razões principais para explicar os altos índices de mortalidade por AF no Brasil: o primeiro deles é o fácil acesso às armas; o segundo é a cultura de violência, onde pequenos conflitos são resolvidos com mortes; e, por fim, a impunidade seria a terceira razão, já que no Brasil apenas entre 5% e 8% dos homicídios são elucidados. Os Estados Unidos esclarecem 65% dos casos de homicídio, dez vezes mais que o Brasil, no entanto, possui uma sociedade violenta, no entanto, proporcionalmente é quarenta vezes mais violenta em casos de homicídios por AF que a Alemanha, Espanha, Austrália, dez vezes mais que a Itália e oito vezes mais que o Canadá, países também situados entre os mais desenvolvidos do mundo. Reino Unido e Japão possuem índices menores que 0,1. Deve-se destacar que o fácil acesso às armas de fogo também é elemento presente na maior parte dos países violentos – diferentemente dos países desenvolvidos com melhores índices –, dentre os quais o Brasil, onde existem, segundo os dados da pesquisa, 8,5 milhões de armas em circulação sem registro.

Parece-nos razoável, sob alguns aspectos, as ideias propostas pelo autor em relação às causas dos crimes, embora, evidentemente, não esgote a questão - e nem foi este o objetivo da pesquisa. Para que se tenham respostas sobre os motivos das altas taxas de mortes por AF é necessário articular as diferentes razões e ponderar sobre a heterogeneidade das regiões e dos índices, já que, como pudemos notar, houve desiguais avanços e retrocessos nos casos dos Estados.

 É possível identificar que os países mais violentos são majoritariamente subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, com altos níveis de desigualdade e amplos segmentos sociais empobrecidos. Nos países com melhores níveis de distribuição de renda, a violência tende a ser menor. Isso não implica em dizer que a pobreza resulte em violência, pois China e Índia, por exemplo, são os países mais populosos do mundo e com grandes camadas pobres, mas possuem taxas de homicídio por AF de 0,7 e 0,3 respectivamente, para cada 100 mil habitantes – bastante inferiores ao Brasil e aos demais países que lideram o ranking. A pobreza e a desigualdade por si só não explicam a violência, mas são elementos comuns em diversos países com altas taxas de morte.

Ao observar os dados brasileiros, podemos notar um pequeno recuo proporcional entre 2003 e 2010, que podem estar ligados a uma melhora na distribuição de renda. O índice Gini utilizado internacionalmente para medir a desigualdade de renda aponta que o Brasil possuía em 1981 0,584 (medido de 0 a 1, quanto menor mais igual); em 1989 esse índice chegou a 0,635; em 1995 foi de 0,600; em 2003 foi 0,583, marcando uma redução, ainda em patamares elevados, e, em 2010 foi de 0,530. A taxa de desemprego pode ser outro elemento explicativo nesta direção: se em janeiro de 2003 era de 11,2%, fechou o ano de 2010 com taxa de 5,3%. Isso, no entanto, não fez com que se reduzisse de forma efetiva o número de mortes por AF.

Se, por um lado, a redução da pobreza no país não se seguiu uma redução proporcional nas mortes por AF, por outro, cabe destacar que os números desse tipo de morte tampouco aumentaram no período acima citado – o que nos sugere que esse tipo de violência torna-se bastante refratária a melhoras nos índices socioeconômicos. Isso pode demonstrar que a redução de índices de pobreza, desigualdade e desemprego se relaciona de forma indireta com a violência, neste caso, os homicídios (que ocupam a quase totalidade dos casos de mortes por AF).

Outro elemento que o autor destaca baseado em pesquisa do Conselho Nacional do Ministério Público é que estes crimes podem não se vincular necessariamente às organizações criminosas, ao crime organizado, entre outros, pois há um considerável número de mortes por motivos fúteis, vinganças, machismo e crimes domésticos, brigas diversas, etc. O autor cita o projeto do Conselho: “Conte até 10. Paz. Essa É a Atitude”. Segundo ele “o estudo foi elaborado a partir de inquéritos policiais referentes a homicídios acontecidos em 2011 e 2012, em 16 Unidades da Federação, verificando a proporção de assassinatos acontecidos por motivos fúteis e/ou por impulso”. São informações alarmantes, já que as mortes por motivo fútil e impulso representam 82% das mortes por armas de fogo em São Paulo e 43% no Rio Grande do Sul.

Conforme já apontamos, estes dados ensejaram a análise do autor de que tais mortes se devem ao fácil acesso às armas de fogo e à cultura da violência, além da impunidade. Observamos algumas fragilidades nessas conclusões, e pretendemos trabalhar essas questões por outra perspectiva.

Em primeiro lugar, considerar cultura da violência, segundo a qual as desavenças são resolvidas com a morte, ainda parece-nos muito amplo e não se estabelece com clareza suas origens e diferenças nos dados regionais. Além disso, não dá conta de um elemento evidenciado pelos dados, que deixa claro que a maioria das mortes ocorre entre os pobres, jovens e negros. Estes sujeitos teriam a cultura da violência mais aflorada ou neles se refletiriam mais claramente esta cultura? É difícil estabelecer algum elemento comum a estas mortes levando em conta a “cultura” quando os dados se apresentam de maneira heterogênea e o país é formado por inúmeras influências socioeconômicas ademais das culturais.

Em relação à impunidade, esta tem sido apresentada como um fator central dos altos índices de violência. Para os defensores dessa teoria, a fragilidade das estruturas jurídicas e policiais do país não seria suficiente para impedir novos crimes. Se houvesse punição, os que matam com armas de fogo pensariam antes de cometer seus crimes, pois teriam um freio baseado na força da lei e no medo de sofrer sanções. Agora, se pensarmos na campanha “Conte até 10”, por exemplo, é possível observar uma contradição: se seus idealizadores buscam conter os crimes ocasionados por impulso, não levam em conta que tais crimes não são passíveis de ponderação de suas consequências, inclusive punitivas. Ou então não são cometidos por impulso, tendo que ser classificados em outra categoria. Outro ponto ligado à questão da impunidade merece ser investigado com mais cuidado. Por um lado, nota-se que, de fato,  os países menos violentos possuem sistemas judiciários e policiais mais eficazes, e ainda menos violentos que os brasileiros. Por outro, deve-se lembrar de que os EUA, apesar da alta resolutividade dos casos e de Estados com alta punibilidade, ainda apresenta dados de mortes por AF altos e incompatíveis com um país desenvolvido.

Parece-nos, assim, que as três razões apresentadas pelo autor como os principais fatores para a morte por AF – acesso fácil às armas de fogo; cultura da violência e impunidade – não conseguem atacar um aspecto central sobre os homicídios, ou seja, as maiores vítimas serem pobres, negros e jovens. Ela traz aspectos pertinentes, mas que não soluciona o porquê desta violência contra estes sujeitos sociais especificamente. Cremos que nem foi esta intenção do autor – solucionar teoricamente esta questão –, mas indicar caminhos, a partir de sua pesquisa que traz um ótimo conjunto de informações.

Em nossa avaliação, o nível homicídios em países como o Brasil e outros dos mais violentos pode ser explicado pelas estruturas e instituições que se relacionam de forma autoritária e violenta – seja fisicamente, moralmente ou simbolicamente – principalmente com os mais pobres. O Estado tem sido excludente, especialmente aos mais pobres, onde está grande parte dos negros, e aos jovens, que não possuem acesso a equipamentos públicos de qualidade de educação, cultura, saúde, assistência, dentre outros. Há problemas secundários que se convertem em protagonistas nesta situação, como o tráfico de drogas e, evidentemente, o de armas, e se tornam instrumentos da violência. Esta lógica da exclusão e do funcionamento autoritário das estruturas cria e perpetua a lógica da violência na solução dos conflitos, que podem retroceder e avançar diante de determinadas políticas públicas, mas que ainda não enfrentam sua estrutura básica.

Evidentemente, há uma multiplicidade de fontes da violência, entretanto, cremos que estejam mais vinculadas ao funcionamento do Estado, a serviço dos interesses do sistema de produção e acumulação capitalistas, que essencialmente resolve de forma violenta seus conflitos a fim de permitir a reprodução desta ordem social. Não se trata de um tema simples e fácil de ser enfrentado, razão pela qual devemos desconfiar e se posicionar diante de soluções fáceis e simplistas para resolver a violência urbana, que geralmente encontram-se amparadas na mesma lógica autoritária que cria e perpetua o atual quadro de violência.








Paulo Eduardo Malerba é cientista social, 
mestre e doutorando em Ciência Política; 
vereador do PT em Jundiaí/SP. 










Bibliografia:


Waiselfisz, Julio Jacobo. MAPA DA VIOLÊNCIA 2013: Homicídios e Juventude no Brasil. CEBELA e Flacso. Rio de Janeiro, 2013. Disponível em mapadaviolencia.org.br  



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