Violência disfarçada

Por Marina Arilha Silva

Soube da história de uma garota que mora estrategicamente próximo ao seu trabalho, porém ela prefere enfrentar toda a logística que implica ir e vir de automóvel a ir a pé até seu emprego. Espantada perguntei porquê desta prática que vai contra todas as regras lógicas atuais inclusive a da agilidade diária, pois caminhando se chega mais rápido do que de carro. A resposta me deixou perplexa: durante o período em que ela andava até a empresa era diariamente assediada por trabalhadores de uma grande empresa multinacional, teve um dia que chegaram a mexer no cabelo dela. Regras lógicas? Realmente esta história não segue nenhuma delas ou será que a violência contra a mulher já é considerada natural dentro de nossa sociedade? 

No dia seguinte em que me comentaram essa história, saí para encontrar meus amigos e, de repente, no auge de nossa argumentação sobre algum tema banal e divertido, eis que fez-se o silêncio. Virei-me para ver o que estavam olhando e claro, do outro lado da rua vinha caminhando uma mulher. Apesar de já ter conversado e aconselhado eles mais de um milhão de vezes, os comentários “nossa que delícia”, “olha essa sainha”, etc... foram inevitáveis. A moça passou e, como se nada tivesse ocorrido continuou seu caminho. Ao longo do tempo percebi que este tipo de situação acontece com maior freqüência quando os homens estão em grupo, ou seja, o alvo real não é a mulher senão seus próprios amigos. Querem mostrar a eles sua virilidade ou será que o flerte como construção cultural sofreu uma série de mudanças no tempo e no espaço e eu é que fiquei para trás? 

Decidi ler sobre o tema, e constatei que minha hipótese estava correta. O assédio sexual/moral em espaços públicos é considerado sim um tipo de violência contra a mulher, inclusive existe uma importante campanha nas redes sociais chamada “Chega de fiu-fiu”! As responsáveis por esse movimento fizeram uma pesquisa com 8.000 mulheres brasileiras de diferentes idades e classes sociais, abaixo alguns dos resultados retirados do hotsite da campanha. 

 

Este primeiro dado já desarma o principal argumento masculino que escuto quando converso com meus queridos amigos sobre este tema. Não pode ser que a maioria dos homens ainda acredite que nós realmente gostamos de ser constrangidas na rua. Por via das dúvidas aí estão alguns dados. Do total de mulheres que dizem não gostar de receber cantadas, a grande maioria diz não reagir. Neste momento surge a pergunta: Não reagem por medo ou por que já estão acostumadas a esse tipo de abordagens? Eu pessoalmente não gosto e nem reajo quando sou o alvo das “homenagens” masculinas e posso afirmar que não respondo muitas vezes por costume ou talvez preguiça. O que sucede é que este tipo de assédio começa muito cedo na vida de uma mulher, na maioria dos casos a menina mal saiu da infância e deve lidar com este tipo de situação que muitas vezes nem entendem de onde surgem ou como responder a eles. 

 

O caso da moça que prefere trabalhar de carro se encaixa perfeitamente dentro do enorme grupo de mulheres apresentado nesta estatística. Sinceramente, eu não imaginava uma cifra tão grande e isso me lembra um cartaz que uma menina carregava durante a marcha pelos direitos das mulheres em São Paulo. Dizia: “Caminhar por um espaço público não torna meu corpo público”. Cabe neste momento mostrar os seguintes dados:

 

A tênue linha entre a paquera e o assédio parece desvanecer quando estamos em uma balada. Já escutei muitas vezes o peculiar argumento que considera a mulher como culpada pelo assédio devido as nossas vestimentas provocativas, afirmam que temos que nos “valorizar” nos “dar o respeito”. Porém, somos livres para usar o que quisermos e onde quisermos. Temos o direito a ser respeitadas independentemente de vestir shorts, saias, decotes ou burca. É importante que entendam que não precisamos “ganhar” o respeito dos homens utilizando as roupas que eles acham mais apropriadas para determinada ocasião; respeito ao próximo é imprescindível para conviver em uma sociedade e todos os seres humanos (independente de gênero, classe ou cor) deveriam gozar dele. 

 

Sei que é muito difícil definir regras absolutas sobre como paquerar ou flertar com uma pessoa, determinar o que é válido ou não em uma aproximação é uma tarefa extremamente complexa, mas arrisco a afirmar que existe um fator que pode e deve ser aplicado em qualquer situação: a empatia, para levar em consideração e se identificar com o que sente o outro, quais são suas emoções e pensamentos frente a uma circunstância. A insistência e insinuações de conotação sexual são realmente desagradáveis. Nós mulheres somos livres para responder ou não para seus “fiu-fiu” e nossa decisão depende de muitos elementos. O entorno, por exemplo, é muito relevante. Receber um “linda” de um estranho enquanto caminhamos por uma rua escura pode ser mais assustador do que imaginam! Também somos livres de não corresponder aquele típico chato da balada que se aproxima de forma aparentemente educada, mas é tão insistente que faz da experiência do flerte completamente invasiva e ainda para descontar seu intento de aproximação frustrado.

 

Não quero dizer que todos os homens que abordem desconhecidas sejam potenciais estupradores. Mas grande parte deles se comporta como se sua vontade de se manifestar fosse mais importante do que o bem estar de quem desejam. Não critico o desejo, podemos seguir desejando quem quisermos inclusive pessoas desconhecidas que passam por nossos caminhos. Mas o limite da expressão do desejo deve ser, sempre, o respeito e o limite de conforto por quem é desejada. Não trato de colocar as mulheres como vítimas porque são objetos de desejo, pois o que realmente nos ameaça é a idéia de que somos passivas nas relações sociais, que a nossa aprovação é desnecessária. 

"É preciso ter coragem para ser mulher nesse mundo. Para viver como uma e para escrever como ela". 
Minha mãe, professora. 

Fontes:

http://thinkolga.com/chega-de-fiu-fiu/ 

http://blogueirasfeministas.com/2013/09/assedio-verbal-e-a-pesquisa-chega-de-fiu-fiu/

Marina Arilha Silva é bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Iberoamericana, Cidade do México.