sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Cidade de Deus, dez anos depois

Ao inovar na abordagem da temática das favelas, o filme de Fernando Meirelles mudou a história do cinema brasileiro

- Beatriz Mendes, na CartaCapital

Fugindo de um grupo de homens fortemente armados, uma galinha corre pelas ruas estreitas de uma favela. Buscapé, um jovem comum que sonha em ser fotógrafo, recebe a ordem do líder do bando para que capture a ave. Camburões da polícia militar adentram o local. Menino e galinha se vêem acuados em meio a um tiroteio: mais uma vez o cerco estava fechado na Cidade de Deus.

Nessa quinta-feira 30 faz exatos dez anos da estréia do filme de Fernando Meirelles e Katia Lund. E se a antológica “fuga da galinha” ainda persiste no imaginário nacional, não é somente essa cena que faz de Cidade de Deus uma produção memorável. Em poucas semanas depois de seu lançamento, mais de três milhões de espectadores foram levados às salas de cinema brasileiras. A temática do filme e a técnica utilizada pelos diretores agradaram crítica e público, fazendo dele uma referência cultural, social e política no País.

“É um filme que mudou a história do nosso cinema. Isso é um fato”, acredita André Gatti, professor da faculdade de cinema da Fundação Armando Álvares Penteado, de São Paulo. “Foram vários investimentos de ordem técnica e a questão da dramaturgia. Foi um filme muito bem elaborado do ponto de vista da concepção do projeto, algo que é incomum no Brasil porque custa muito e demanda tempo”, explica.

De acordo com ele, grande parte da importância do Cidade de Deus se deve à sua pós-produção. “Pela primeira vez um filme de longa-metragem passou por um processo de pós-produção, algo que só era comum na publicidade. Até então isso nunca tinha sido feito, até porque uma coisa é você fazer uma peça de pouco mais de 30 segundos, outra é fazer um longa-metragem de mais de duas horas”, afirma o professor.

Gatti também ressalta a grande contribuição do longa para o aprimoramento da dramaturgia cinematográfica no Brasil. Os diretores fizeram um trabalho com os próprios moradores da comunidade, recrutando pessoas que participavam de oficinas de teatro do Nós no Morro. “Esse foi um método que a Katia Lund desenvolveu, aproveitando uma experiência que estava em andamento com o pessoal do Nós do Morro. Não é a toa que ele trabalhou com o Seu Jorge, porque ele também foi um sujeito que quando era mais jovem passou por esse processo de socialização pelo teatro”, conta.

Cidade de Deus abriu as portas do mercado internacional para Fernando Meirelles. O filme foi indicado a quatro Oscars, nas categorias de melhor direção (Fernando Meirelles), roteiro adaptado (Bráulio Mantovani), fotografia (César Charlone) e edição (Daniel Rezende). “Para se ter uma ideia, é a única produção brasileira que tem um livro estrangeiro totalmente dedicado a ela”. A publicação a que o professor se refere é City of God in Several Voices – Brazilian Social Cinema as Action, publicado na Inglaterra. “Filmes como Cidade de Deus, Central do Brasil e Tropa de Elite são exemplos de uma cinematografia que o público estrangeiro aprecia. Essas três produções deram uma visibilidade para o cinema brasileiro, algo de que, na época, ele estava carente, esse é um grande legado”, arremata.

“Estética da fome”

Apesar da inegável evolução técnica e do desenvolvimento de uma narrativa moderna de cinema de ação, para o professor, a principal contribuição de Cidade de Deus se dá do ponto de vista de sua temática, na medida em que a abordagem deixou de ser paternalista. “É um filme bastante complexo pelo fato da denúncia social, de trabalhar com as questões adversas em que vivia aquela comunidade”, diz.

Contudo, na época em que foi lançado, algumas polêmicas surgiram a respeito dessa abordagem. Para Ivana Bentes, crítica e professora de cinema, o filme se enquadrava no que ela chamou de “cosmética da fome”, uma vez que embeleza a miséria. Gatti não concorda com essa tese. “A Ivana criou essa polêmica que foi um tanto datada. Ela dizia que o filme não era uma denúncia da miséria, mas sim uma glamourização, o que não é bem verdade. Porque o roteiro foi inspirado em um texto que foi escrito por uma pessoa que vivia naquela comunidade e que fez um relato fiel daquela realidade. Nas próprias palavras do Paulo Lins, autor do livro, aquela era a ‘visão do ocupado e não do ocupante”, argumenta.

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